terça-feira, 11 de maio de 2010

Conto: Despedida


Clarice derrama seu olhar enternecido sobre a face pálida de seu pai. Naquele leito hospitalar, cercado de todo conforto, de um bonito vaso de margaridas, suas flores preferidas, na presença calorosa de todos os seus amores, esposa, filha e as três netas, ele chama por ela.

Último desejo dele antes de partir da vida: sentir a doçura de seus lábios. Estudara tanto para salvar vidas e agora nada a fazer. Tudo que pode dar-lhe é aquele beijo salgado de lágrimas.

Desde pequena desejara ser médica. Parecia um sonho impossível pois sabia que seus pais lutavam com muita dificuldade para garantir o necessário a uma vida digna, e nisso haviam sido bem sucedidos. Nunca faltara alimento naquela mesa simples, muito menos afeto. Neste quesito eram abonados assim como nos valores morais. Uma vez, lá pelos seus 11 anos, desejara tanto uma borracha importada, toda cor de rosa, que se “esquecera” de devolver a amiguinha da escola. Assim que viu, seu pai a questionou e fez devolver a dona, ficando uma semana sem tv. Ninguém pode ficar com aquilo que não lhe pertence, ele dizia.

Seu irmão nunca havia se conformado com aquelas regras, insistia em obter da vida muito mais do que os pais podiam oferecer. Na adolescência foram muitas brigas e castigos, mas nada parecia dete-lo em sua fome insaciável de subir na vida percorrendo atalhos. Foi um enorme e desgastante sofrimento para todos quando se envolveu com drogas. Seu destino foi traçado por essas escolhas equivocadas. Aos 17 anos, em uma tentativa frustada de roubar uma moto, levou um tiro que tirou sua vida e a alegria dos olhos de seus pais. Essa tragédia anunciada fora um divisor de águas para Clarice. Fez ali, no enterro do irmão, uma promessa a si mesma. Nunca pegaria atalhos. Por mais difícil e custoso que fosse, percorreria o caminho certo, conquistaria por seu trabalho e mérito, uma profissão digna que lhe possibilitasse serenar a dor do coração de seus pais. Quem sabe sentindo orgulho pela filha pudessem expurgar um sentimento de culpa que nunca os abandonara. E se tivessem sido mais duros com ele? Se tivessem mudado pra uma cidade pequena para afasta-lo das más companhias? Clarice acordou muitas vezes, no meio da madrugada, ouvindo o choro contido de sua mãe ao olhar a foto do filho. Seu coração apertava num desejo amoroso de arrancar aquela dor do seio da mãe.

Foram anos difíceis. Trabalhava em uma loja de roupas durante o dia, ia direto à escola, chegava tarde da noite mas encontrava sempre sua mãe esperando, com o prato de comida guardado no forno. Conversavam um pouco e após o banho, debruçava-se por mais 2 horas sobre os livros. Não haveria dinheiro para pagar uma faculdade particular, ainda mais de medicina. Sua única chance seria a universidade pública. Nos finais de semana, seus amigos já haviam desistido de chamá-la para um cinema ou uma festa. Eram dois dias dedicados integralmente aos estudos.

Depois de 3 anos finalmente ingressou em medicina na USP. Foi uma festa imensa, soltou fogos dentro de si. O maior presente foram as lágrimas emocionadas de seus pais, agora de alegria e orgulho. Multiplicaram-se os esforços, mas como aluna dedicada conquistou bolsas como monitora, pesquisadora, tudo aquilo que oferecesse oportunidade de conjugar aprendizado e subsistência. Formou-se médica neurologista e na colação de grau, enquanto seus colegas exultavam em barulhenta euforia, revia o filme da sua vida em alta velocidade nas suas telas mentais, tal como fazia agora. Procurou pelos pais na enorme platéia e não segurou as lágrimas ao ver que, abraçados, seguravam nas mãos sua primeira e única boneca. Ela devia ter uns 6 ou 7 anos, quando a Babi, como a chamava, quebrou o braço. Depois de chorar muito ela encontrou uma solução. Pegou um lenço da mãe, enrolou todo e enfaixou o braço prendendo-o ao corpo. Mostrou aos pais dizendo que ela ia ser médica para cuidar das pessoas como tinha cuidado da Babi.

Ao sentir as mãos frágeis de seu pai apertando as suas, retorna ao doloroso momento presente. E ao difícil sentimento de impotência que toma conta de si. Mas Clarice não esperava o que viria a seguir. Ele sussurra, exigindo que ela se aproxime ainda mais.

- Filha, você iluminou a minha vida . Me fez um homem feliz e só por ter sido seu pai a minha vida valeu a pena. Eu te amo muito.

Foram suas últimas palavras. As lágrimas desceram procurando lavar a dor da saudade que já sentia. Mas estranhamente sabia que ele partiu em paz e isso tinha um novo e importante significado para ela.

Com o tempo, as palavras de seu pai naquela despedida ecoaram em sua mente e a fizeram compreender que seu amor, sua integridade e determinação haviam possibilitado a cicatrização da dor de seus pais. Um bálsamo docemente derramado, gota a gota, sobre as feridas abertas que a decepção, a culpa e a perda haviam causado.

Clarice experimentou a paz feita de quem soube tecer uma vida com os fios do coração.