quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Meu Ano Novo



Como hoje, 09/09, é meu aniversário, festejo meu Ano Novo ! Nada melhor que lembrar Drummond...

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Intuição

Era 1967.

Faltavam apenas 3 dias para o natal e ninguém parecia entender a estranha decisão de Marina de viajar de Fortaleza à Santos para atender a um capricho de seu pai.

Seu noivo suspeitava que fosse tão somente uma desculpa para rever o antigo namorado, ciumento como sempre. Seus tios negavam-se a emprestar o dinheiro da passagem de avião, argumentando que não haveria motivo para aquela súbita mudança de planos. Até mesmo seu irmão Rodrigo, sempre tão companheiro, não quis ajudá-la dizendo que era “bobagem do papai”, apenas saudade que logo ia passar.

Mas Marina sabia que tinha que atender aquele pedido. Nunca seu pai havia falado daquela forma, havia algo em sua voz. Não foi exatamente um pedido. Ele apenas disse: Filha, eu gostaria tanto que você estivesse aqui neste natal. Existia ali uma mensagem, isso ela sabia, podia ouvir nas entrelinhas. Não era dele dizer algo assim, não se lembrava de algum dia ele ter feito ou dito qualquer coisa que se assemelhasse a um pedido para si.

Esta certeza a fez mover montanhas. Conseguiu com uma amiga, cujo irmão era da aeronáutica, que viajassem num vôo de carga até o Rio de Janeiro. O pagamento pela passagem era levar essa amiga junto, que não conhecia São Paulo. Quando soube de seu intento, seu noivo ameaçou: se você for, está tudo terminado. Então adeus. Embarcaram na pior viagem de sua vida. Não existiam poltronas, apenas um banco na lateral do avião, totalmente desconfortável. Repleto de caixas por todos os lados. Muitas horas depois, anestesiadas de tanta dor nas costas e pernas, desembarcaram no Rio. De lá, pegaram um ônibus para Santos. Marina estava ansiosa para chegar. Faria uma surpresa a seu pai. Ficou imaginando seu sorriso franco e largo, seus doces olhos azuis, seu abraço amoroso, desses que a gente não quer mais soltar...

Ao chegar em casa e tocar a campainha quem abre a porta é seu irmão Rodrigo.

-O que você está fazendo aqui? Não quis me dar a passagem mas veio passar o natal com eles?

-O papai sofreu um acidente. Está no hospital.

Marina sentiu o chão desabar. Enquanto fazia sua odisséia para chegar até seu pai, ele havia sofrido um acidente vascular cerebral no navio onde trabalhava, e em decorrência, uma forte queda. Estava em coma.

Marina passou vários dias ao lado dele, no leito do hospital. Segurava sua mão, chorava e tentava dizer-lhe que ela não havia vindo por causa do acidente mas porque ele havia pedido. Logo após o ano novo chegar, ele partiu.

Seu noivo veio vê-la, pediu perdão, quis retomar o noivado, pois tinham planos sérios de casamento. Ela não aceitou. Nunca mais o viu, nem voltou para Fortaleza.

Uma noite, após chorar pelas perdas que havia sofrido, Marina teve um sonho. Estava em uma linda praia, sentada sobre uma pedra contemplando o mar. Seu pai chegou, pegou suas mãos entre as suas, beijou-as, e disse: Filha, eu sei que você veio atendendo ao meu pedido. Fique em paz. Beijou-a, acariciou seus cabelos e partiu, caminhando mar adentro.

Ao acordar ela soube que estivera com ele. E fez o que pediu. Seguiu em paz.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Conto: Despedida


Clarice derrama seu olhar enternecido sobre a face pálida de seu pai. Naquele leito hospitalar, cercado de todo conforto, de um bonito vaso de margaridas, suas flores preferidas, na presença calorosa de todos os seus amores, esposa, filha e as três netas, ele chama por ela.

Último desejo dele antes de partir da vida: sentir a doçura de seus lábios. Estudara tanto para salvar vidas e agora nada a fazer. Tudo que pode dar-lhe é aquele beijo salgado de lágrimas.

Desde pequena desejara ser médica. Parecia um sonho impossível pois sabia que seus pais lutavam com muita dificuldade para garantir o necessário a uma vida digna, e nisso haviam sido bem sucedidos. Nunca faltara alimento naquela mesa simples, muito menos afeto. Neste quesito eram abonados assim como nos valores morais. Uma vez, lá pelos seus 11 anos, desejara tanto uma borracha importada, toda cor de rosa, que se “esquecera” de devolver a amiguinha da escola. Assim que viu, seu pai a questionou e fez devolver a dona, ficando uma semana sem tv. Ninguém pode ficar com aquilo que não lhe pertence, ele dizia.

Seu irmão nunca havia se conformado com aquelas regras, insistia em obter da vida muito mais do que os pais podiam oferecer. Na adolescência foram muitas brigas e castigos, mas nada parecia dete-lo em sua fome insaciável de subir na vida percorrendo atalhos. Foi um enorme e desgastante sofrimento para todos quando se envolveu com drogas. Seu destino foi traçado por essas escolhas equivocadas. Aos 17 anos, em uma tentativa frustada de roubar uma moto, levou um tiro que tirou sua vida e a alegria dos olhos de seus pais. Essa tragédia anunciada fora um divisor de águas para Clarice. Fez ali, no enterro do irmão, uma promessa a si mesma. Nunca pegaria atalhos. Por mais difícil e custoso que fosse, percorreria o caminho certo, conquistaria por seu trabalho e mérito, uma profissão digna que lhe possibilitasse serenar a dor do coração de seus pais. Quem sabe sentindo orgulho pela filha pudessem expurgar um sentimento de culpa que nunca os abandonara. E se tivessem sido mais duros com ele? Se tivessem mudado pra uma cidade pequena para afasta-lo das más companhias? Clarice acordou muitas vezes, no meio da madrugada, ouvindo o choro contido de sua mãe ao olhar a foto do filho. Seu coração apertava num desejo amoroso de arrancar aquela dor do seio da mãe.

Foram anos difíceis. Trabalhava em uma loja de roupas durante o dia, ia direto à escola, chegava tarde da noite mas encontrava sempre sua mãe esperando, com o prato de comida guardado no forno. Conversavam um pouco e após o banho, debruçava-se por mais 2 horas sobre os livros. Não haveria dinheiro para pagar uma faculdade particular, ainda mais de medicina. Sua única chance seria a universidade pública. Nos finais de semana, seus amigos já haviam desistido de chamá-la para um cinema ou uma festa. Eram dois dias dedicados integralmente aos estudos.

Depois de 3 anos finalmente ingressou em medicina na USP. Foi uma festa imensa, soltou fogos dentro de si. O maior presente foram as lágrimas emocionadas de seus pais, agora de alegria e orgulho. Multiplicaram-se os esforços, mas como aluna dedicada conquistou bolsas como monitora, pesquisadora, tudo aquilo que oferecesse oportunidade de conjugar aprendizado e subsistência. Formou-se médica neurologista e na colação de grau, enquanto seus colegas exultavam em barulhenta euforia, revia o filme da sua vida em alta velocidade nas suas telas mentais, tal como fazia agora. Procurou pelos pais na enorme platéia e não segurou as lágrimas ao ver que, abraçados, seguravam nas mãos sua primeira e única boneca. Ela devia ter uns 6 ou 7 anos, quando a Babi, como a chamava, quebrou o braço. Depois de chorar muito ela encontrou uma solução. Pegou um lenço da mãe, enrolou todo e enfaixou o braço prendendo-o ao corpo. Mostrou aos pais dizendo que ela ia ser médica para cuidar das pessoas como tinha cuidado da Babi.

Ao sentir as mãos frágeis de seu pai apertando as suas, retorna ao doloroso momento presente. E ao difícil sentimento de impotência que toma conta de si. Mas Clarice não esperava o que viria a seguir. Ele sussurra, exigindo que ela se aproxime ainda mais.

- Filha, você iluminou a minha vida . Me fez um homem feliz e só por ter sido seu pai a minha vida valeu a pena. Eu te amo muito.

Foram suas últimas palavras. As lágrimas desceram procurando lavar a dor da saudade que já sentia. Mas estranhamente sabia que ele partiu em paz e isso tinha um novo e importante significado para ela.

Com o tempo, as palavras de seu pai naquela despedida ecoaram em sua mente e a fizeram compreender que seu amor, sua integridade e determinação haviam possibilitado a cicatrização da dor de seus pais. Um bálsamo docemente derramado, gota a gota, sobre as feridas abertas que a decepção, a culpa e a perda haviam causado.

Clarice experimentou a paz feita de quem soube tecer uma vida com os fios do coração.

sábado, 24 de abril de 2010

Mini contos

Exercício coletivo e criativo do Laboratório do Escritor. Escrever mini contos (estórias contadas em duas ou tres frases) contendo palavras sorteadas da caixinha (aqui sublinhadas).

Aqui estão os meus:

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Entrega

Prévia saudade de si mesma.

Apaixonadamente mergulhava nesse encontro tão esperado.

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Solidão

Na cadeira de balanço tecia seu tricô para o único amor que lhe restara.

Seu gato angorá.


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Extravagância

Tudo era novo naqueles sabores exóticos.

Alcachofra. A palavra já soara estranha.

Ela que fora criada a base de farinha de mandioca e água...


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Fim do túnel

Escuridão. Anos demasiados mergulhado no abismo de si mesmo.

Tirado o curativo, enxergava o mundo resplandecente

como jamais imaginara existir.


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Impotência

Último desejo dele antes de partir da vida: sentir a doçura de seus lábios.

Estudara tanto para salvar vidas e agora nada a fazer.

Tudo que pode dar-lhe é aquele beijo salgado de lágrimas.

domingo, 11 de abril de 2010

Conto: Do céu ao inferno

Alberto dá duas batidas na porta, a segunda mais forte. Logo em seguida surge no vão um vulto de mulher, silhueta delicada sem rosto ou voz. Pensou que parecia figura de sonho, desses em que não se deseja acordar.

Sem entender a razão, sente o coração disparar. Há algo suave e misterioso naqueles contornos, curvas de fêmea sensual. Nada de perfeição, não seria aquele tipo que se desnuda narcisicamente em revistas masculinas. Não parece jovem. Sente-lhe o cheiro. Perfume de mulher madura. Está tão inebriado por essas primeiras sensações que gostaria de poder paralisar o tempo. Antecipa premonitoriamente que não seria mais o mesmo a partir daquele instante.

Lentamente ela se aproxima e a luz do dia vai descobrindo sua beleza. Andar suspenso, tão leve que quase não enxerga seus pés a tocar o chão. A iluminação vai se debruçando em seu corpo, colando feito purpurina. Ela não se veste. Orna seu corpo com um simples vestido, algo transparente, deliciosamente dançando no embalo de seu andar. Bem se vê que não usufrui do fino trato que a boa fortuna oferece. Tal qual a casa e tudo a sua volta, carece de luxo ou requinte. Contudo sobra beleza. Transborda elegância.

Como num belo filme, talvez de Fellini, um facho da luz do sol recai sobre seu rosto.

Grandes olhos negros escondem-se acanhados e cedem o palco ao sorriso. Nunca havia visto alguém sorrir assim. Não havia pudor, cautela, falsidade ou sedução. Apenas um sorriso que abria-se como quem desconhece o medo. Como somente poderia imaginar em uma criança. Fora capturado. Mergulhara no abismo desses olhos, na mansidão de seu riso, para não mais voltar.

Subitamente é resgatado desse torpor.

- Boa tarde. Precisa de alguma coisa ?

Preciso de você, ele pensou. Voltando à realidade deu-se conta de que deveria estar com uma aparência horrível. Roupas sujas e amarrotadas, cabelos desgrenhados, suor da exaustão de horas caminhando pela estrada de terra. Detestou que ela o visse assim.

- Boa tarde. Desculpe a aparência e mais ainda incomodá-la. Estou a horas procurando ajuda. Não passa ninguém nessa estrada e essa foi a única casa que avistei por quilômetros. Sofri um acidente com meu carro. Ainda estou meio atordoado. Não entendi direito o que aconteceu.

- Ah, meu Deus ! Entre, deixe-me ajuda-lo. Você está ferido?

Só se for com a flechada no meu coração. Além de tudo, era doce e atenciosa.

Quando sentiu o toque de sua mão em seus ombros , foi como um choque elétrico. Desconhecia isso. Já havia lido em romances e até já escutara amigos relatarem esse tipo de emoção, mas somente agora compreendia o significado.

- Não se preocupe, obrigado. Nada sério, apenas pequenos cortes e uma forte dor no corpo. Parece que um trator passou por cima de mim.

- Vou buscar uma bacia com água e toalha pra tirar esse excesso de poeira e ver as feridas. Você tem sorte sabia? Fiz curso de enfermagem quando morei na cidade.

Muito mais sorte do que você imagina, foi um anjo que te colocou no meu caminho, pensou. Enquanto a aguardava, correu os olhos pela sala, até que estancou ao ver o porta retrato sobre o buffet. Era um homem forte, sorrindo, vestido de jeans e bota, sobre um belo cavalo. Deveria ser um pouco mais velho que ele, porte altivo, de quem segura firme as rédeas da vida. Aproximou-se e pegou aquele retrato para certificar-se daquilo que assustadoramente passava pela sua cabeça.

Como se assistisse a um filme de trás pra frente, retrocedeu algumas horas. Ainda era madrugada. Dirigia cansado, já arrependido de teimar em chegar logo ao destino ao invés de dormir num motel qualquer. Detestava chegar atrasado, e sabia que todos esperariam a sua chegada para dar início à reunião. Resolveu pegar uma estrada vicinal que informaram cortar um bom caminho. Um atalho. Não conhecia nada por aquelas bandas, ainda mais a noite. Era um breu total, sem lua e sem estrela. Cenário perfeito para uma tragédia, pensou agora.

Repentinamente, após uma curva fechada, e em alta velocidade para aquela estrada, é surpreendido por um relinchar. Só escutou o forte barulho da pancada. Tentou controlar o carro, que rodou várias vezes até capotar e finalmente parar num barranco. Não sabe quanto tempo ficou desmaiado. Acordou com a claridade do sol batendo em seu rosto e demorou um bom tempo até entender o que havia acontecido. Arrastando-se, conseguiu sair do carro pela janela do passageiro. Quando viu o estrago percebeu o milagre de estar vivo. Olhando ao redor, em busca de algum sinal de civilização, viu a distância um chapéu de palha a beira da estrada. Foi caminhando em sua direção e entrou em pânico ao ver dois corpos estendidos a cerca de 200 metros abaixo.

Um belo cavalo negro ainda respirava com dificuldade.

Um homem alto, forte, vestido de jeans e bota jazia morto ao seu lado. Pareceu a Alberto que ele havia se arrastado em direção ao velho companheiro.

Aquele tipo de lealdade era coisa de um grande homem.

- Gostou da foto?

É surpreendido pela doce voz daquela mulher e sente seu coração oprimido. Em instantes fora do céu ao inferno. A mesma mulher de quem desejava conquistar e receber todo amor, iria nutrir por ele o mais triste ódio. Encheu-se de coragem.

- Quem é esse homem?

- Meu marido.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

sem palavras


Porque a poesia pode expressar-se sem palavras

quinta-feira, 8 de abril de 2010

A gente não sabe onde colocar o desejo





"A gente não sabe o lugar certo onde colocar o desejo/
Todo beijo, todo medo, todo corpo em movimento
está cheio de inferno e céu/
Todo santo, todo canto, todo pranto,
todo manto está cheio de inferno e céu/" *





A gente não sabe mesmo onde colocar o desejo.

Ele se veste com tantas roupagens que engana ao próprio criador.

Desvenda-lo exige esforço e dor.

Quase como tirar a pele, de tão entranhado em nosso ser.

Quando finalmente podemos ver sua beleza nos assustamos.

Não fazemos a menor idéia de onde coloca-lo em nossa vida.

Muitas vezes, após essa mágica visão, corremos a vesti-lo novamente.

E escondemos dentro de uma caixa, fechada a cadeado, no fundo do armário.

Medo imenso de que nos cause tamanha ebulição, que derrube larvas sobre a vida que construímos até ali.

Pavor de que nos exija encarar a frustação ou pior, a decepção por quem nos tornamos.

Melhor que permaneça onde está, escondido de nós.

Algumas vezes, a partir do encantamento que provoca

Da sedução arrebatadora com que nos captura

Saímos feito loucos, atropelando tudo

Até o que mais amamos

Na euforia, o colocamos no topo, e ficamos escravos desse tirano senhor

Pagamos o preço de nos perder de nós mesmos.

O desejo nos instiga a percorrer nosso próprio purgatório.

Todo humano está cheio de inferno e céu...


* Caetano Veloso - trecho de música Pecado original de 1978

domingo, 4 de abril de 2010

renascer

Renascimento. Ressurreição.
Páscoa tem esse significado, a possibilidade sempre presente de reconstruir-se sobre as ruínas da dor. Esse renascer me parece impor uma condição, além da coragem e da fé. O perdão. Ele permite jogar fora toneladas de rancor e mágoa que consomem energias demasiadas, que roubam forças para qualquer outra coisa. A história de Jesus simboliza essa verdade. Crucificado, morto e sepultado, ele ressuscita na leveza de seu amor e perdão, tão leve que sobe aos céus...
Apenas humanos, carecemos dessa grandiosidade de espírito. Mas podemos tentar trilhar seu caminho. Ele se fez homem como nós e mostrou ser possível.
Independente de religião, Jesus marcou a história da humanidade.
E marcou definitivamente para o bem, para o amor, para a paz...

segunda-feira, 29 de março de 2010

Náufragos

Deitados lado a lado, na mesma cama, pés encostados sob brancos lençóis, único sinal de ligação entre aqueles corpos, abraçados a seus travesseiros. No abismo dos anos só restara aquele contato furtivo, quase destituído de calor humano. Apenas bóia, transformada em âncora sorrateiramente no escorrer do tempo. Náufragos de um amor sonhado. Quarto cuidadosamente arrumado, porta retrato dos filhos sobre o criado mudo, livros empilhados, rádio relógio sobrevivente das pancadas nas manhãs sobressaltadas, e um suave perfume de lavanda. Seus olhos percorriam lentamente os objetos, num misto doloroso de saudade antecipada e ânsia de gravar-lhe os detalhes. Deliberadamente afastou seus pés do contato com aquele homem que tanto amara. Onde foi que se perderam? Havia uma paixão pungente, que incendiava qual rastilho de pólvora a um simples olhar... Havia uma ternura envolvendo todos os seus gestos e um desejo revestido em dádivas de prazer ao bem amado. Uma querência de contar seu dia, de ouvir-lhe histórias, de compartilhar escolhas. Seu sonho nutrido diariamente era amar aquele homem até o fim de seus dias. Assim se saberia feliz. Tão simples a vida lhe parecia. Agora sentia-se infantil por imagina-la como um conto de fadas. Alimentou-se de ilusões de tal modo que a vida fora posta na prateleira. Como o porta retrato do lindo casal, sorrindo a felicidade de um amor a dois. Foto. Momento. Recorte congelado de tempo.

Esquecera desligado o freezer. Derretido, esvaiu-se entre dedos...

terça-feira, 23 de março de 2010

o poder da energia

Estava ansiosa e tensa, até dispensou o café naquela manhã, preferindo um chá. Diziam que era relaxante. Sempre havia sido daquelas pessoas muito serenas, que evitava discussões e conflitos. Na verdade fugia deles. Mas agora não tinha jeito, era chefe e não poderia se furtar de sua responsabilidade. Essa era a pior parte, ter que "chamar a atenção" de uma funcionária que estava causando vários problemas na equipe. Ela com apenas 34 anos e a pessoa em questão 15 anos mais velha, com temperamento agressivo, antiga no setor e de certa forma "protegida" politicamente, ninguém conseguia transferí-la dali.

Com tudo isso em mente, pediu que viesse até a sua sala e fechou a porta. Calma, mas de modo firme, expos os transtornos que havia causado com seu comportamento, prejudicando o trabalho e os colegas de equipe, enfim as questões necessárias a serem resolvidas. Durante a sua fala, observou a forte tensão em seu rosto, a postura armada de seu corpo sobre a cadeira, e a sensação que tinha era a de que se pudesse, ela teria voado em seu pescoço. Seu olhar destilava mais que raiva, era um ódio quase incontido.

Apesar de perceber toda essa comunicação não verbal, conseguiu manter-se aparentemente calma, pelo menos o bastante para não alterar sua voz, sua postura e menos ainda o que havia se proposto a dizer. Claro, por dentro havia um turbilhão, justo ela que detestava conflito...

Ao terminar sua fala, tudo isso não durou mais que 5 minutos, disse que gostaria de ouvir o que ela teria a dizer de tudo aquilo.

Exatamente no instante em que a funcionária abriu a boca para falar, ouviu-se um forte estalo. Ambas se assustaram e olharam em direção ao local de onde veio o ruído.

Um vaso da planta conhecida como Comigo Ninguém Pode, cujo caule, da grossura de um diâmetro de 7 cm, partira-se inteiramente ao meio.

A funcionária diz assustada:

- Nossa, credo, que foi isso?

Ao que ela sorri e responde:

- Ainda bem que a sua raiva atingiu a planta e não a mim.

Depois dessa experiencia ela nunca mais duvidou do poder da energia. E sempre tem um vasinho de planta por perto...