domingo, 11 de abril de 2010

Conto: Do céu ao inferno

Alberto dá duas batidas na porta, a segunda mais forte. Logo em seguida surge no vão um vulto de mulher, silhueta delicada sem rosto ou voz. Pensou que parecia figura de sonho, desses em que não se deseja acordar.

Sem entender a razão, sente o coração disparar. Há algo suave e misterioso naqueles contornos, curvas de fêmea sensual. Nada de perfeição, não seria aquele tipo que se desnuda narcisicamente em revistas masculinas. Não parece jovem. Sente-lhe o cheiro. Perfume de mulher madura. Está tão inebriado por essas primeiras sensações que gostaria de poder paralisar o tempo. Antecipa premonitoriamente que não seria mais o mesmo a partir daquele instante.

Lentamente ela se aproxima e a luz do dia vai descobrindo sua beleza. Andar suspenso, tão leve que quase não enxerga seus pés a tocar o chão. A iluminação vai se debruçando em seu corpo, colando feito purpurina. Ela não se veste. Orna seu corpo com um simples vestido, algo transparente, deliciosamente dançando no embalo de seu andar. Bem se vê que não usufrui do fino trato que a boa fortuna oferece. Tal qual a casa e tudo a sua volta, carece de luxo ou requinte. Contudo sobra beleza. Transborda elegância.

Como num belo filme, talvez de Fellini, um facho da luz do sol recai sobre seu rosto.

Grandes olhos negros escondem-se acanhados e cedem o palco ao sorriso. Nunca havia visto alguém sorrir assim. Não havia pudor, cautela, falsidade ou sedução. Apenas um sorriso que abria-se como quem desconhece o medo. Como somente poderia imaginar em uma criança. Fora capturado. Mergulhara no abismo desses olhos, na mansidão de seu riso, para não mais voltar.

Subitamente é resgatado desse torpor.

- Boa tarde. Precisa de alguma coisa ?

Preciso de você, ele pensou. Voltando à realidade deu-se conta de que deveria estar com uma aparência horrível. Roupas sujas e amarrotadas, cabelos desgrenhados, suor da exaustão de horas caminhando pela estrada de terra. Detestou que ela o visse assim.

- Boa tarde. Desculpe a aparência e mais ainda incomodá-la. Estou a horas procurando ajuda. Não passa ninguém nessa estrada e essa foi a única casa que avistei por quilômetros. Sofri um acidente com meu carro. Ainda estou meio atordoado. Não entendi direito o que aconteceu.

- Ah, meu Deus ! Entre, deixe-me ajuda-lo. Você está ferido?

Só se for com a flechada no meu coração. Além de tudo, era doce e atenciosa.

Quando sentiu o toque de sua mão em seus ombros , foi como um choque elétrico. Desconhecia isso. Já havia lido em romances e até já escutara amigos relatarem esse tipo de emoção, mas somente agora compreendia o significado.

- Não se preocupe, obrigado. Nada sério, apenas pequenos cortes e uma forte dor no corpo. Parece que um trator passou por cima de mim.

- Vou buscar uma bacia com água e toalha pra tirar esse excesso de poeira e ver as feridas. Você tem sorte sabia? Fiz curso de enfermagem quando morei na cidade.

Muito mais sorte do que você imagina, foi um anjo que te colocou no meu caminho, pensou. Enquanto a aguardava, correu os olhos pela sala, até que estancou ao ver o porta retrato sobre o buffet. Era um homem forte, sorrindo, vestido de jeans e bota, sobre um belo cavalo. Deveria ser um pouco mais velho que ele, porte altivo, de quem segura firme as rédeas da vida. Aproximou-se e pegou aquele retrato para certificar-se daquilo que assustadoramente passava pela sua cabeça.

Como se assistisse a um filme de trás pra frente, retrocedeu algumas horas. Ainda era madrugada. Dirigia cansado, já arrependido de teimar em chegar logo ao destino ao invés de dormir num motel qualquer. Detestava chegar atrasado, e sabia que todos esperariam a sua chegada para dar início à reunião. Resolveu pegar uma estrada vicinal que informaram cortar um bom caminho. Um atalho. Não conhecia nada por aquelas bandas, ainda mais a noite. Era um breu total, sem lua e sem estrela. Cenário perfeito para uma tragédia, pensou agora.

Repentinamente, após uma curva fechada, e em alta velocidade para aquela estrada, é surpreendido por um relinchar. Só escutou o forte barulho da pancada. Tentou controlar o carro, que rodou várias vezes até capotar e finalmente parar num barranco. Não sabe quanto tempo ficou desmaiado. Acordou com a claridade do sol batendo em seu rosto e demorou um bom tempo até entender o que havia acontecido. Arrastando-se, conseguiu sair do carro pela janela do passageiro. Quando viu o estrago percebeu o milagre de estar vivo. Olhando ao redor, em busca de algum sinal de civilização, viu a distância um chapéu de palha a beira da estrada. Foi caminhando em sua direção e entrou em pânico ao ver dois corpos estendidos a cerca de 200 metros abaixo.

Um belo cavalo negro ainda respirava com dificuldade.

Um homem alto, forte, vestido de jeans e bota jazia morto ao seu lado. Pareceu a Alberto que ele havia se arrastado em direção ao velho companheiro.

Aquele tipo de lealdade era coisa de um grande homem.

- Gostou da foto?

É surpreendido pela doce voz daquela mulher e sente seu coração oprimido. Em instantes fora do céu ao inferno. A mesma mulher de quem desejava conquistar e receber todo amor, iria nutrir por ele o mais triste ódio. Encheu-se de coragem.

- Quem é esse homem?

- Meu marido.

2 comentários:

Dani Marino disse...

Lindo,lindo,lindo! Eu quase chorei quando vc leu! Bjos

nathalia.z disse...
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