segunda-feira, 29 de março de 2010

Náufragos

Deitados lado a lado, na mesma cama, pés encostados sob brancos lençóis, único sinal de ligação entre aqueles corpos, abraçados a seus travesseiros. No abismo dos anos só restara aquele contato furtivo, quase destituído de calor humano. Apenas bóia, transformada em âncora sorrateiramente no escorrer do tempo. Náufragos de um amor sonhado. Quarto cuidadosamente arrumado, porta retrato dos filhos sobre o criado mudo, livros empilhados, rádio relógio sobrevivente das pancadas nas manhãs sobressaltadas, e um suave perfume de lavanda. Seus olhos percorriam lentamente os objetos, num misto doloroso de saudade antecipada e ânsia de gravar-lhe os detalhes. Deliberadamente afastou seus pés do contato com aquele homem que tanto amara. Onde foi que se perderam? Havia uma paixão pungente, que incendiava qual rastilho de pólvora a um simples olhar... Havia uma ternura envolvendo todos os seus gestos e um desejo revestido em dádivas de prazer ao bem amado. Uma querência de contar seu dia, de ouvir-lhe histórias, de compartilhar escolhas. Seu sonho nutrido diariamente era amar aquele homem até o fim de seus dias. Assim se saberia feliz. Tão simples a vida lhe parecia. Agora sentia-se infantil por imagina-la como um conto de fadas. Alimentou-se de ilusões de tal modo que a vida fora posta na prateleira. Como o porta retrato do lindo casal, sorrindo a felicidade de um amor a dois. Foto. Momento. Recorte congelado de tempo.

Esquecera desligado o freezer. Derretido, esvaiu-se entre dedos...

terça-feira, 23 de março de 2010

o poder da energia

Estava ansiosa e tensa, até dispensou o café naquela manhã, preferindo um chá. Diziam que era relaxante. Sempre havia sido daquelas pessoas muito serenas, que evitava discussões e conflitos. Na verdade fugia deles. Mas agora não tinha jeito, era chefe e não poderia se furtar de sua responsabilidade. Essa era a pior parte, ter que "chamar a atenção" de uma funcionária que estava causando vários problemas na equipe. Ela com apenas 34 anos e a pessoa em questão 15 anos mais velha, com temperamento agressivo, antiga no setor e de certa forma "protegida" politicamente, ninguém conseguia transferí-la dali.

Com tudo isso em mente, pediu que viesse até a sua sala e fechou a porta. Calma, mas de modo firme, expos os transtornos que havia causado com seu comportamento, prejudicando o trabalho e os colegas de equipe, enfim as questões necessárias a serem resolvidas. Durante a sua fala, observou a forte tensão em seu rosto, a postura armada de seu corpo sobre a cadeira, e a sensação que tinha era a de que se pudesse, ela teria voado em seu pescoço. Seu olhar destilava mais que raiva, era um ódio quase incontido.

Apesar de perceber toda essa comunicação não verbal, conseguiu manter-se aparentemente calma, pelo menos o bastante para não alterar sua voz, sua postura e menos ainda o que havia se proposto a dizer. Claro, por dentro havia um turbilhão, justo ela que detestava conflito...

Ao terminar sua fala, tudo isso não durou mais que 5 minutos, disse que gostaria de ouvir o que ela teria a dizer de tudo aquilo.

Exatamente no instante em que a funcionária abriu a boca para falar, ouviu-se um forte estalo. Ambas se assustaram e olharam em direção ao local de onde veio o ruído.

Um vaso da planta conhecida como Comigo Ninguém Pode, cujo caule, da grossura de um diâmetro de 7 cm, partira-se inteiramente ao meio.

A funcionária diz assustada:

- Nossa, credo, que foi isso?

Ao que ela sorri e responde:

- Ainda bem que a sua raiva atingiu a planta e não a mim.

Depois dessa experiencia ela nunca mais duvidou do poder da energia. E sempre tem um vasinho de planta por perto...

domingo, 21 de março de 2010

em busca

Passamos a vida toda “em busca de”. É constante a nossa insatisfação. Se por um lado ela nos move, e isso tem um caráter positivo, por outro ela nos ilude e sabota.

Aquela famosa frase de colocarmos a felicidade sempre onde não estamos.

Se estamos finalmente fazendo a viagem dos nossos sonhos, logo a felicidade passa a ser a volta à nossa casa, à nossa cama e o nosso arroz com feijão passa a ser mais saboroso e desejado que o mais sofisticado prato francês.

Se estamos casados, desejamos a liberdade da vida de solteiros, e se solteiros queremos nos prender numa vida a dois bem rotineira.

Se os filhos cresceram, nos queixamos que era tão gostoso quando pequenos. E quando crianças, não vemos a hora de vê-los crescidos.

Estudantes, ansiamos o profissional. Para logo sentirmos falta daqueles bons tempos de faculdade.

Trabalhando, almejamos a aposentadoria. Para logo nos cansarmos dela e irmos em busca de alguma atividade, porque não agüentamos ficar sem trabalhar.

Quanto perdemos de vida. De tempo.De felicidade.

E a vida passa. O tempo passa.

E a felicidade ?

Bem, quem sabe na outra vida...

sábado, 20 de março de 2010

Sinal verde


Cronica escrita a partir da frase "Sinal verde, atravessei pra lá do sol" de uma música de Sérgio Ricardo. Exercício do Laboratório do Escritor.

Em mais da metade da minha vida tudo que tive foram imensos sinais vermelhos. Não, você não pode seguir em frente. Você tem obrigações. Você é mulher, tem que obedecer seu pai. Depois virou “seu marido”. Você tem que criar seus filhos. Cuidar da casa, do marido, das finanças, da empregada, do supermercado, do cachorro. Quem sabe lá, no fim da fila, sobrando um tempinho, você se cuida um pouco.

O tempo passou. Os filhos gradativamente foram tomando seu rumo, tornaram-se bons profissionais, pessoas de bem, fizeram suas escolhas amorosas e formaram suas próprias famílias. Assim como deve ser, afinal nós os criamos para a vida ou para alimentar egoisticamente as nossas carências? Tudo bem que muitas vezes, ou quase sempre, não gostamos muito de algumas dessas escolhas, mas a vida é mesmo deles, assim como os erros e acertos. Levamos um bocado de tempo e sofrimento pra aprender a lidar com isso.

Quanto ao marido, bem, fiz o que me mandaram. Segui as regras, cuidei dele, fechei os olhos muitas vezes, engoli a mágoa e engavetei a raiva. O sinal vermelho sempre presente.

Até que um dia ele se foi. Literalmente. Teve um enfarte fulminante. Detalhe: transando com a amante num luxuoso motel da cidade. Desgraçado. Eu tinha que economizar até na pasta de dente.

Abriu o sinal amarelo. A essa altura do campeonato eu já contava 62 anos. Tinha 5 lindos netos, adoráveis. De vez em quando, a minha filha caçula inventava de viajar com o marido, pra apimentar a relação e deixava os 2 pequenos comigo. Eu os adoro, mas ficava exausta. Não conseguia negar, achava que era minha obrigação. Também não me permitia sair à noite com as amigas pra dançar, paquerar. Imagina, que absurdo, na minha idade... Só um cineminha, uma viagem pra Águas de São Pedro, Pousada do Rio Quente. Sinal amarelo.

Aos 70 anos,me libertei. Me apaixonei por um gato maravilhoso de 65 anos, um garotão cheio de vida, bem humorado, culto, também viúvo. Estamos nos descobrindo e curtindo a vida juntos, parecemos adolescentes no encantamento. Mas saboreamos melhor do que eles porque valorizamos o tempo e aprendemos muito. O sexo? Nunca soube antes o que era prazer. O amor e o tesão, e uma pilulazinha azul, dão um jeitinho em tudo.

Sinal verde, atravessei pra lá do sol, na Ilha de Santorini, na Grécia, onde sempre desejei ver o céu tingir-se de vermelho...

sexta-feira, 19 de março de 2010

amor x poder

A obstinação de estar certo, de vencer discussões e disputas, é tão somente um esconderijo. Onde se refugia a insegurança sob as vestes da suposta autoridade, de quem pretende ver aceitos seus argumentos de qualquer maneira, mesmo que sob ameaça e imposição. Estabelece dicotomias: um é forte o outro fraco, um certo outro errado, um algoz outro vítima, um sujeito outro objeto...

De que modo uma relação se constrói ou se mantém nessa perspectiva? A isso podemos chamar amor? Ou algo patológico sob um disfarce socialmente aceitável?

Relações desiguais. E não se trata de idade, cor da pele, religião, nada disso. É outro o significado. O de um sobreposto ao outro, num acordo tacitamente velado em que um se considera o dono do outro, de seus pensamentos, atitudes, decisões. E outro que permite-se dissolver no parceiro, deixando sua própria existencia em mãos alheias.

O amor maduro e verdadeiro dá as mãos, caminha junto, segura nos tropeços, alternadamente um e outro mostra-se generoso e desprendido. Alegra-se com os voos solitários do parceiro a alcançar montanhas cada vez mais altas. Compreende e acolhe docemente suas dores. Respeita as escolhas individuais. Permanece livre.

Amor verdadeiro portanto é conquista construída e sedimentada no tempo, com o frescor de águas cristalinas fluindo através de mútua reciprocidade.

Ninguém perde. Todos ganham.

quinta-feira, 18 de março de 2010

espelho


Sou inteira, íntegra e verdadeira
Quero transparencia do outro
Doce, quero adoçar a vida ao meu redor
Profundamente amorosa
Não compreendo a vida sem amor
Amor que flui, envolve e penetra como a água
Alcança oceanos e raízes
Sou flexível como o bambu
As tempestades me fazem vergar
Mas não me derrubam, e me fazem mais forte
Conciliadora, prefiro o diálogo do entendimento aos berros da raiva
Só pra provar quem tem razão...
Prefiro a perda que ensina do que o ganho que ilude
Na certeza divina de que ambas coexistem para nossa evolução
Quero amor com paixão e não paixão sem amor
Quero um encontro no tempo da delicadeza
A ternura de um olhar
A mão que afaga e segura
A ética, a honra e a intenção que moldam o caráter
Muito além do discurso...da palavra...da atitude...
"A espinha ereta, o coração tranquilo"
Quero a sabedoria da escolha certa
Diante de todas as oportunidades
Aquelas que me façam melhor
Que me inquietem pelas incertezas
E me desafiem a descobrir tesouros dentro de mim
Quero a paz de quem soube seguir seu coração
E dormir serenamente todas as noites
E amanhecer aquecida pela esperança
Renovada para novas paisagens...

quarta-feira, 17 de março de 2010

palavras

São tantas palavras em burburinho
como se subitamente todas descobrissem ter voz
e desatassem a falar enlouquecidas
Preciso do silencio
para escutá-las mansamente
compreender seu significado
e traduzir sua emoção
tentando compor entre elas e o silencio
uma melodia literária

Palavras respiram silencio

"Já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas".

Clarice Lispector

academia para a alma


Sou dessas pessoas que segue a vida acreditando, até mesmo nos momentos de escuridão. Uma fé que nem sei de onde vem, mas que me sustenta sempre que perco o chão. E não foram poucas as vezes em que estive perdida de mim mesma nesse labirinto insano em que a vida sabiamente nos coloca. De que outro modo poderia sair da mesmice, do conforto das coisas vividas? Como iria em busca de outros caminhos se não mudasse olhar, se não o deslocasse para o alto e para além da estrada percorrida? É dessa amplidão que descubro o aprendizado possível através de cada dor, de cada desencontro, cada lágrima e até de toda decepção que parecia dilacerar minha alma. Ao contrário, tudo isso fortaleceu o que em mim era mais frágil, mais carente de exercício, músculo frágil e inerte. Academia para a alma... exercitar viver.

terça-feira, 16 de março de 2010

beleza que faz amar


"Amar é qualquer coisa de mais grave e significativo do que
o entusiasmo pelas linhas de um rosto e a cor de uma face;
é decidirmo-nos por um certo tipo de ser humano
que é simbolicamente anunciado nos pormenores do rosto,
da voz e dos gestos.
O amor é uma escolha profunda. "
José Ortega y Gasset
" A beleza que seduz dificilmente coincide
com a beleza que faz amar."
Essa é uma adaptação da frase de Ortega y Gasset

segunda-feira, 15 de março de 2010

envelhecer


Envelhecer.
O corpo e a mente lentamente evoluem num processo decrescente,
e por mais que o espírito mantenha-se ativo e jovem,
sente-se o peso das coisas em que o corpo já não responde mais como antes.
Os cabelos ficam brancos, a pele perde o viço , os músculos perdem força e rigidez.
Perdas. Naturais mas dolorosas.
Há ganhos. Experiência, sabedoria, tolerância,
acompanhar a história de filhos e netos, vibrar com suas conquistas
e ofertar colo e orientação nas horas difíceis.
Agora invertem-se os papéis.
É chegada a hora em que os filhos tornam-se pais dos pais.
E será preciso muito afeto, compreensão e paciência
para lidar o melhor possível com essa nova fase.
Aos filhos, a dedicação e tolerância para com as dificuldades da idade,
a lentidão, as idas frequentes aos médicos,
o entendimento de que será necessário retribuir amorosamente
tudo aquilo que receberam quando bebês e crianças,
em termos de tempo, esforço e paciencia.
Aos pais a compreensão de que os filhos lutam as lutas diárias,
de trabalho e sobrevivencia, de cuidados e preocupações com seus filhos.
E, ao casal que teve seu casamento salvo dos desgastes de décadas,
a força e o amor que possibilitem compartilhar das dores, dos medos, das perdas.
A mansidão de alma a tornar a vida mais leve.

Inevitavelmente a vida trará momentos de extrema dor,
que vai demandar uma capacidade maior de enfrentamento e superação.
Enquanto esse momento não chega,
a gente precisa aprender a viver com alegria, com prazer,
privilegiando os espaços em que os afetos possam ser vivenciados,
o trabalho possa trazer a gratificação de se saber útil
e as oportunidades de realizar sonhos possam ser agarradas com fé.

domingo, 14 de março de 2010

o que é sida?

Era uma terça feira tranquila, até aquele momento. Embora estivesse sobrecarregada com a ausencia de sua colega, mais uma vítima da tal virose, tudo transcorria bem.
De repente, chega uma mulher, de aproximadamente 40 anos, bem vestida, educada, mas transpirando suor e desespero. Pergunta se trabalha ali e se poderia ajudá-la. Isso, em pleno corredor. Traz nas mãos um papel amarrotado, como se fosse uma bomba. E era.
- Eu preciso que me diga se isso é o que eu tô pensando.O que é SIDA?
Gentilmente pede que entre na sala e fecha a porta.
- Estou vendo que voce está muito nervosa. Me conte o que está acontecendo para que eu possa te ajudar.
Ela entrega o tal papel amarrotado e verifica tratar-se de um relatório hospitalar de internação e óbito de um homem.
- Estou cuidando do seguro que pediu esse documento ao hospital. Quando fui buscar vi escrito isso aqui.
Aponta com o dedo a palavra SIDA.
- Por favor me diga, isso é AIDS ?
Ao ler o relatório, constata que aquele homem foi à obito em consequencia de um cancer de estomago. Explica à mulher que, conforme informa o relatório, naquela internação foi feito o diagnóstico de SIDA, que significa Síndrome da Imunodeficiencia Adquirida, AIDS.
Pergunta quem seria aquela pessoa.
- Era meu ex-marido. Estávamos separados a 2 anos. Eu não posso acreditar...Voce nem imagina quantos problemas eu tive com ele, quantas dívidas ele me deixou, agora isso... Justo agora que eu conheci alguém... eu to de casamento marcado...meu Deus o que eu faço agora?
Chorou por um longo tempo, desabafando sua dor, tentando buscar alguma lucidez em meio a tanto caos que subitamente havia se instalado em sua vida.
Depois de ter realizado seu trabalho como aconselhadora, procurando dar alguma sustentação àquela mulher, ela se deu conta que mesmo após 18 anos vivendo diariamente essa triste realidade, não parou de doer. Não conseguia sair imune.
Ainda bem.

sábado, 13 de março de 2010

lapidando


Não existe pior inimigo que aquele que se alimenta intimamente dos nossos monstros,
nos sabotando sorrateiramente.
Sendo nossa sombra, nosso avesso, dele não podemos nos livrar.
Muito menos fugir. Há que se enfrentar com coragem.

Voce já deve ter ouvido de pessoas à sua volta, amigos e amores,
que voce é muito bom em algo, ou tem uma qualidade especial,
ou uma habilidade ou dom que encanta.
A única pessoa que duvida, que realmente não acredita nisso é voce.
E não é falsa modéstia. É medo.
Voce simplesmente não se acha capaz,
não enxerga no espelho o que todos estão vendo.
E isso te paralisa. Voce não segue em frente, não tenta, não arrisca.
Pura sabotagem do seu inimigo interno.
Enfrente-o.
Se ele for o Golias, seja o Davi.
Com certeza voce pode muito mais e muito além dele.
Basta querer. Basta acreditar.

Potencialidade não é nada sem trabalho e fé.
Descobrimos o diamante após a primeira lapidada.

cronica em exercício

“Abandonar-se à imensidão do mar como um barco à vela, solto ao vento, enfrentando tempestades e calmarias em busca do ansiado porto seguro.”

*Eu estava com essa frase na cabeça quando cheguei à praia naquela manhã cinzenta. Um tanto distante, à minha direita, um jovem entrava na água com sua prancha de surfe.

Mas antes de molhar a cintura, ele pára e com certa reverência faz o sinal da cruz. Percebo o quanto aquele momento de reverência tinha deixado o jovem concentrado.

Ele percebe, e eu desvio o olhar rapidamente. Olho para o horizonte e tento enxergar o que ele enxerga. Vejo um mar e um sol simplesmente, e ainda procuro meu porto seguro. Viro o rosto, vejo o dele e miro um olhar simples e pleno de quem vê beleza em tudo.

Mas um olhar nunca revela tanto quanto você gostaria de acreditar. Eu fui à praia naquele dia para espairecer, contemplar. Não imaginei por um segundo sequer, que o que se passava na cabeça daquele jovem surfista poderia ter me levado tão longe.

Acho que a onda que leva também traz. É como os sentimentos. Calmos num momento e revoltos em outros. Talvez seja isso: o surfista por alguma razão representa a minha tentativa de manter o equilíbrio na revolução dos sentimentos.

Alguma coisa naquele rapaz me tocou e de certa forma mudou o meu dia. Ele se prepara para enfrentar o mar, a aventura, o perigo.*

E tudo de que precisa está lá: prancha, músculos, vontade e fé. O mar está agitado, conseqüência da virada de tempo da noite passada. As ondas estão se quebrando com força, formando um larga faixa de espuma próximo à praia.

Eu observo com admiração enquanto ele abraça a prancha e caminha confiante mar adentro. Mais adiante deita-se sobre ela, remando com braços fortes e cortando seguidas ondas até ultrapassá-las. Fica ali, algum tempo, no sobe e desce daquele mar que respira a plenos pulmões. Até que a escolhe. Atira-se sobre ela.

Vejo ao longe a beleza daquele jovem, desafiando o mar.

Sorri.

Cheguei à praia naquela manhã como velejadora.

Retornei surfista.

( o trecho entre * foi escrito em parceria pelos meus novos amigos do laboratório do escritor, num interessante e mobilizador exercício coletivo )

da minha varanda

Da minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar.*

Já venho pelo caminho antecipando esse momento. Deitar-me mansamente na rede e sentir a brisa com cheiro de maresia. Momento sagrado de contemplação e relaxamento.

É uma bela tarde de sol e começa a aumentar o volume de pessoas que caminham a beira mar.

Ao longe, imponente e majestoso, um navio parte para mais um cruzeiro. Aquele apito fica ecoando bonito pelo ar. Sempre me emociono ao ouvi-lo.

A paisagem ganha ares românticos e merecia uma bela fotografia para eternizá-la. E pensar que esta é uma sexta feira qualquer.

Meu olhar se estende, atraído subitamente por um casal que vem ao longe, caminhando de mãos dadas. Ainda estão distantes demais para imaginar a idade, mas pelo contorno dos corpos, e o ritmo do andar, já não têm o vigor da juventude.

Observo que gesticulam alternadamente. Vez ou outra um deles volta sua cabeça ao parceiro, e deduzo que estão envolvidos numa agradável conversa. Talvez contando casos, comentando acontecimentos do dia, do trabalho.

Transmitem uma cúmplice intimidade, dessas gostosas de ver, que chega a nos causar inveja.

Andam de mãos dadas num gesto de carinho e ternura. Ali existe um elo. O diálogo é suavemente gesticulado, de escuta atenta e interessada. Ali existe amizade.

Conforme se aproximam vislumbro os belos cabelos brancos, os corpos levemente arqueados e um pouco acima do peso. Vitalidade vem mesmo da alma.

Entretidos nesse enlace, ainda que eu estivesse lá na areia e neles esbarrasse, por um breve e distraído instante, pediriam desculpas e voltariam rapidamente ao seu universo. Enamorados.

Me encanto, aqui, do balanço da minha rede, com o afeto que une aquele casal.

Da minha varanda contemplo o mundo e refresco a alma.

(*Rubem Braga - frase do escritor usada como exercício de cronica)

quarta-feira, 10 de março de 2010

(in)completude


Estamos acostumados com a idéia da falta, da perda e da quase impossibilidade de alcançar desejos e metas por deficiência de recursos, especialmente os internos. Como se o copo nunca ficasse cheio pela falta de líquido para completa-lo. Estar aquém nos inquieta e angustia e todos conhecemos bem esta sensação.
Mas também existe o oposto. Possuir muito mais recursos à oferecer do que a possibilidade de realizá-los ou de alguém disposto a receber. Ter mais líquido do que aquele copo comporta e esse transbordamento significar um triste desperdício. Pode-se pensar em encher outro copo ou guardar, conter para outra ocasião. Mas esse não era o desejo real, aquele manancial de recursos voce ansiava designar àquele fim e não à outro.
Tanto quanto a falta, o que inadequadamente chamemos de excesso, causa angústia, frustação, desamparo. Digo inadequado porque para quem é possuidor desse manancial, não o sente como excesso, apenas como seu repertório. Pode ser criatividade, inteligencia, amorosidade, generosidade entre outras. Ter de conter, reprimir torna-se tarefa muitas vezes insustentável, a causar sofrimento.
Como lidar com essa dor? Assim como a falta busca ser preenchida, esse manancial precisa de um espaço que lhe dê continência. Espaço suficientemente bom. Esperá-lo pacientemente, ao invés de desperdiçar. Ou quem sabe encontrar novas possibilidades de realização. Outros rios por onde possa fluir livremente sem represar tanta potencialidade. Adaptações necessárias, embora frustantes..

terça-feira, 9 de março de 2010

nove


Era madrugada de sexta feira, 04 de maio de 2007. Sentada na janelinha do avião, contemplando a noite escura, pontuada de pequenos amontoados de luzinhas espalhados aqui e alí, de repente se deu conta que somava nove. Era uma velha mania sua, somar os números até sobrar um único inferior a dez. Sua vida era pontuada pelo nove. 4+5+2+0+0+7= 1+8= 9.
Sorriu. Aos 45 anos, 9 de novo, iria finalmente resgatar sua origem.
Essa é uma longa história, a ser contada em capítulos ou episódios diversos. Neste, voltamos apenas 2 meses antes, momento em que, assim, inesperadamente, sua mãe lhe revelara que seu pai biológico não era quem pensava. Mas outro, que conhecera e se apaixonara, sem jamais ter revelado a ninguém. Dele, tudo que sabia era o nome, a cidade em que morava (em outro estado), e uma vaga informação de que tinha um importante trabalho voluntário ligado à doutrina espírita.
Depois daquela conversa, embora tenha tranquilizado a mãe em seu arrependimento, sentiu o chão fugir sob seus pés. Pela quarta vez em sua vida, e esperava fosse a última, tinha uma nova revelação sobre sua origem.
Levou dois meses para processar isso tudo internamente e para contar com a ajuda leal e prestativa de uma amiga, que conseguiu localizar uma pessoa com o mesmo nome que o pai.
Na véspera, preenchida de uma súbita coragem, ligou para o telefone, confirmando tratar-se da mesma pessoa. Comprou a passagem e avisou a mãe, que entrou em pânico, nunca imaginando que aquela filha sempre tão dócil tomasse essa atitude.
E agora, nessas tres horas de viagem, contemplando estrelas, revia toda sua trajetória.
De alguma maneira, parecia haver um sentido, mesmo que desconhecido.
Sentia um turbilhão de emoções: medo, ansiedade, expectativa, alegria, tristeza. Não fazia a menor idéia de como falaria. Como chegar para um homem, que deveria ter cerca de 70 anos e dizer: Boa tarde, eu sou sua filha. Tudo podia acontecer. Podia levar a porta na cara. Podia nem recebê-la.
A única coisa que naquele momento realmente importava é que ela iria enfrentar com coragem a sua verdade, a sua origem. Sem subterfúgios. Sem intermediários. Sem mentiras ou meias verdades. E o que quer que acontecesse seria inteiramente seu.
Seria finalmente dona da sua história.

sobre o amor

O amor é sempre um mistério. É único, singular.
Razões , tais como as entendemos, não explicam e nada dizem sobre o porquê amamos uma pessoa. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, tratando-se de amor adulto e saudável, não é absolutamente gratuito e abnegado, do tipo incondicional, que se sente pelos pais e filhos.
Em uma relação amorosa existe um caldeirão em que se misturam diversos ingredientes e a reciprocidade é a colher que permite a burilação de todos eles. Sem ela, tudo desanda, queima, perde o sabor.
Entre tantas pessoas, dois olhares se cruzam e algo acontece. Pode ser apenas um momento efemero.
Pode ser o início de um encontro, de um namoro, de uma paixão.
E /ou de um grande amor.
Ou de um desencontro, de um engano, de uma decepção. De uma ilusão criada pela sua desesperada ânsia em vestir no sapo as vestes de um príncipe.
Como saber? Serenamente... vivendo, conhecendo, percebendo.
Desbravando esse universo desconhecido em que se constitui o outro e esse novo par do qual voce faz parte. Porque não basta estar atento ao parceiro, mas também a voce, ao que ele te desperta ou não.
Como sabiamente disse Guimarães Rosa: "o real se dispõe é no meio da travessia"
Respeite o tempo. Saboreie a travessia.

além do olhar

Acordou preguiçosa, como todas as manhãs. Permitiu-se ficar mais 10 minutinhos naquela embriaguez saudável, entre sono e vigília. Pensou na vontade que tinha de poder simplesmente ausentar-se de tudo.
-Quem sabe ligo pro chefe e digo que peguei dengue? Mas e se acabar pegando mesmo, afinal estamos numa baita epidemia. Não vai dar pra ter duas vezes...
Voltando do devaneio da fuga, nada a fazer senão levantar e enfrentar o dia.
Banho tomado, engole o copo de leite às pressas e assume o volante do seu pretinho básico, como carinhosamente o chama.
No caminho ao trabalho, parada no semáforo, já impaciente com o atraso que vai lhe causar problemas, assusta-se com um estrondoso barulho. Do outro lado da avenida, no cruzamento, dois carros bateram feio.
À sua volta, alguns buzinavam para que seguisse em frente, apressados como ela.
O jovem rapaz que estava ao lado da sua janela, tentando vender canetas e balas, perguntou à ela, entre assustado e ansioso:
-Será que alguém se machucou?
-Não sei, não dá pra ver. Mas a batida foi forte.
- Vou até lá tentar ajudar.
Detalhe: ele era cego.
E, movendo-se por entre os carros, guiando-se através da bengala nos pneus, lá foi ele.
Ela passou a marcha e seguiu em frente, fazendo uma pequena prece por aquelas pessoas.
Seu dia não foi mais o mesmo depois disso.

segunda-feira, 8 de março de 2010

tempo amigo

Todas as coisas tem seu tempo, e quase sempre não conseguimos entender isso. Queremos que o tempo seja o nosso, enquadrando-o no espaço das nossas aflições e ansiedades. Atropelando tempo atropelamos vida. Violentamos sonhos que poderiam ter sido reais, não fosse a nossa destemperança.
Tempo é aliado não inimigo. É ele que permite a maturação, o desabrochar da verdade.
Porque ao tempo a verdade se rende, se revela, seja qual for a sua cor ou suas vestes. À ele a verdade se desnuda, se entrega irremediavelmente...
As mentiras contadas ao outro e à nossa consciencia não vencem à prova do tempo. Os enganos com os quais nos deixamos iludir são frágeis cristais que os bons ventos temporais fazem derrubar.
Subverter as demandas do tempo é torná-lo sagaz inimigo a devorar vida, sonhos e esperanças.
Este talvez não seja o momento de provar os melhores vinhos, mas de saber como se prepara o solo para colher as melhores e mais saborosas uvas.

morrer


Falar de morte ou do morrer é para a grande maioria das pessoas tão angustiante e tão pavoroso que preferem viver tentando esconder a finitude da vida debaixo do tapete. Afastamos ao máximo essa idéia, criamos hospitais para que funcionem como o tapete, escondendo de nós o que se passa da dor, do medo, da angústia de chegar ao fim. Quando alguém que amamos se encontra neste doloroso processo da chamada doença terminal, ao invés de acolher, negamos a ele o direito de expressar aquilo que sente. Afastamos o mais rapidamente possível qualquer conversa que ameace tomar esse caminho, sob o falso otimismo declaramos que ele ficará bom logo e classificamos como morbidez ou depressão qualquer tentativa de falar da morte, sem sequer nos darmos conta de que na verdade ele fala de vida. Cada vez mais a ciência descobre que o melhor que se pode fazer a uma pessoa em um quadro terminal, é leva-la para casa, para estar próxima dos seus amores e amigos, no seu canto confortável e familiar. Permitir que se possa escutar a sua verdadeira voz, sem a onipotência de achar que tem que ter as respostas, a solução, a cura. Constatar a humana impotência diante da morte abre o espaço necessário à intimidade que nos aproxima na dor. Muito mais confortador é dar continência , é segurar , é oferecer e partilhar colo num abraço amoroso que nenhuma anestesia ou morfina será capaz de substituir. Faça um pequeno exercício mental, coloque-se por alguns instantes nessa condição, no lugar do outro, empatize. E mesmo angustiado por essa idéia, tolere o mal estar. E pense como gostaria de viver seus últimos dias, mesmo limitado ao leito. Aonde estaria, que pessoas estariam ao seu lado. E sobretudo o que gostaria de poder falar, escutar ou mesmo silenciar em paz, sem aquele peso das coisas não ditas por medo. Compreenda que não há nada de errado em chorar junto, em sentir-se triste. A vida nos pede coragem e isso nada tem a ver com endurecer. A coragem vem de entrar em contato com a verdade, seja ela qual for, e nos permitir todos os sentimentos e emoções que ela nos suscita.

perda insana

Um pequeno outdoor, daqueles que se colam em muros, continha o seguinte anúncio: “Perdeu seu amor? Trazemos de volta pra você. Pagamento após resultado. Tel ...”

Se aquele anúncio existe com certeza há demanda.

Como será alguém que busca este tipo de “serviço”? Que se dispõe a pagar para que seja feito um “trabalho” espiritual pra que tenha de volta um amor que partiu. Sou uma ignorante a respeito desses assuntos, não faço a menor idéia de como se realiza isso. E na verdade, prefiro continuar assim.

O que ma faz pensar é sobre o “cliente”.

Ninguém gosta ou fica feliz quando alguém que se ama, por alguma ou nenhuma razão, não te ama mais, não quer mais uma relação.

Dói. E dói muito.A gente se sente rejeitado, desamparado, sem chão. E essa dor custa um bocado a passar. Nossa fantasia, e desejo, muitas vezes inconfessável, é de que o outro vai se arrepender, vai dar outra chance, vai voltar a nos amar como antes.

Mas pode não ter esse final feliz que se espera. E ser mesmo o fim.

Que sentimento é esse que recorre ao “sobrenatural” pra apagar esse The End da tela de seus quadros mentais? Posse, orgulho, onipotência. Qualquer coisa menos amor.

Quantas monstruosidades cometidas sob a justificativa do amor...

Amor é liberdade, é respeito. Nenhum amor floresce, nem mesmo sobrevive às prisões que cerceiam a alma, que pretendem acorrentar sentimentos.

A perda é algo inerente à tudo. Aceita-la talvez seja o único caminho capaz de impedir a maior de todas as perdas: a de si mesmo, da sua mínima lucidez.

mudanças

Mudanças. Sempre abalam um pouco as estruturas.

Simplesmente porque provocam inquietude, rompem a comodidade, subvertem a ordem conhecida e segura. Ainda quando se sabe que as mudanças serão pra melhor. Uma angústia misturada com um bocado de ansiedade remexe nas nossas entranhas. E a incerteza sobre o que virá, como será e como iremos nos sentir diante do novo, do desconhecido, afeta a tranqüilidade do nosso sono; e até sonhando esse sentir nos acompanha.

Mas o que seria de fato nossas vidas sem as mudanças? De dentro e de fora.

Um deserto árido, sempre a mesma paisagem. Tédio, estagnação.

Possivelmente entraríamos num processo de putrefação, como o alimento que esquecido no armário embolora, cria mofo e apodrece.

A vida exige movimento, dinamismo, renovação.

Então, quando a mudança surgir, qualquer que seja ela, apesar de tudo isso, permita-se um outro olhar. Dê uma chance ao novo. Aprenda e cresça com ele.

Apenas se dê ao direito de despedir-se do que se vai, viva esse luto, pequeno ou grande. Só haverá espaço se você deixar que o antigo fique por lá, no passado.

Leve na sua bagagem, tudo que aprendeu, o saldo positivo, a polpa suculenta e nutritiva da fruta.

A vida sempre segue em frente. Depende de nós acompanha-la ou não.

mosaico

Quis o destino que ambos se encontrassem. Clara, separada do homem que havia amado e que subitamente adoecera e morrera. De AIDS. A dor havia sido quase insuportável, mais que perde-lo ela descobrira que ele tinha transmitido à ela aquele maldito vírus. Foi como uma bomba que explodiu dentro de si abalando todas as suas estruturas. Espanto, medo, angústia, tristeza e uma raiva imensa... dele, de Deus, de si mesma. Por que ela? O que tinha feito de tão errado pra merecer esse castigo?

Clara passou por todas as fases que antecedem a aceitação. Suportou o insuportável. Lentamente foi juntando os pedacinhos, tentando em toda a sua fragilidade descobrir alguma força que a fizesse seguirem frente. O pior de tudo era calar a sua dor. Não queria que ninguém soubesse, principalmente sua mãe. Era doloroso demais imaginar o seu sofrimento. Quanto aos outros, pra que contar? Para ser julgada e condenada? Para ter sua vida exposta, sujeita ao preconceito e ignorância dos vizinhos? Justo naquela cidade tão pequena...

Encontrou acolhida junto às pessoas que se dedicavam a cuidar dela e de tantos outros. Foi com enorme resistência e cheia de dúvidas que aceitou participar de um grupo terapêutico. Tinha medo da exposição. Mas afinal aquelas pessoas estavam passando pelo mesmo que ela e já se encontravam para passar pelas consultas. Enfim aceitou o convite. Foi desse modo que conheceu Marcos. Começaram com olhares de tímido interesse e atração. Passaram a caminhar lado a lado até a casa da Clara, após as reuniões. E foram compartilhando suas histórias. Encontrando acolhida e escuta para as suas dores, apaixonaram-se. Mas tinham medo. Medo de amar, medo de perder. Como se não acreditassem merecer da vida essa chance, esse encontro.

Mas como o amor grita mais alto e invade todos os espaços, ele venceu. Namoraram. Casaram.

Tempos depois, apesar de todas as inúmeras orientações para que se prevenissem, Clara engravidou. O desejo foi muito poderoso, foi capaz de sabotar toda razão. Foi uma mistura intensa e delicada de sentimentos. Alegria, medo, culpa, ansiedade...esperança. Fez tudo o que foi necessário para que seu filho não recebesse aquela herança.

Nasceu Pedro, forte e perfeito. Clara viveu a emoção da maternidade, entristecida por não poder amamentar seu bebe, mas renovada pela vinda daquela criança tão amada. Pedro foi cuidado, tomou todas as medicações necessárias, e finalmente após 18 meses teve confirmado seu resultado de exame. Negativo. Foi uma festa, cada um daqueles profissionais que acompanharam todo o processo, não pode conter a emoção. Clara e Marcos renasceram em Pedro.

Essa é uma história verídica; os nomes, é claro, são fictícios.

Quis novamente o destino que eu revisse Clara e Marcos alguns anos depois. Agora não mais no ambulatório, mas no hospital onde eu trabalhava. Acompanhei a internação de Clara e pude estar ao seu lado até o fim. Serena, paradoxalmente, apesar da dor e do medo, estava agradecida pela vida que havia construído para si. Todos aqueles cacos deram origem a um lindo mosaico, que finalmente ela pudera admirar.

sustentação

Confia em mim, eu não te deixo cair.

Diante da angústia, da dor que vem de dentro ou de fora, da sensação caótica de não encontrar chão sob nossos pés, buscamos sustentação.

Quem nos segure, nos abrace, seja continente à nossa aflição. Desde muito pequeninos encontramos no abraço da nossa mãe, esse espaço que acolhe, segura e acalenta, transmite a tranqüilidade necessária para afugentar nossos monstros.

Toda vida buscamos de algum modo, pessoas que possam cumprir esse papel.

Nessas relações, sejam amorosas, fraternas ou familiares, ou substitutivas desses vínculos, depositamos, tal qual um bebê, nossa vida, nosso universo afetivo-emocional, numa entrega da mais absoluta confiança. Fantasia ou ilusão que cobra, muitas vezes, um alto preço.

Porque qualquer que seja a relação, e por mais bem intencionado que seja o outro, essa sustentação é impermanente, é transitória.

Ela é profundamente necessária, possibilita uma contenção à loucura na qual poderíamos nos perder. O outro é nosso referencial, nosso espelho, é a mão que nos permite não cair no abismo.

Mas...à medida que crescemos, não apenas fisicamente, mas emocionalmente, faz-se necessário que se avalie o quanto se pode confiar no outro, o tamanho da sua força, da sua capacidade de acolhimento e o tempo em que podemos agüentar que o outro nos sustente, sem perdermos nesse processo a medida da nossa própria força interna.

O outro, seja quem for, não estará lá para sempre a nos segurar.Além disso, também é humano, suscetível às próprias fragilidades. E é bom que assim seja, sob pena de ficarmos inertes e passivos. Depositando no outro toda a responsabilidade.

Algo parecido com aprender a andar de bicicleta. No início nosso pai, ou mãe, nos equilibra, empurra, ensina a pedalar. Depois as rodinhas fazem um pouco dessa função.

Chega a hora que depende de nós. Da nossa coragem, do nosso ímpeto, da nossa ousadia.

Da confiança de que vamos conseguir.

Essencial a mão que se oferece amorosamente, o abraço que absorve a nossa dor.

Ainda mais essencial que não se desmereça o enorme potencial que reside lá no mais íntimo, na semente que contém a centelha vital capaz de nos fazer seguir em frente. Apesar de.