segunda-feira, 8 de março de 2010

mosaico

Quis o destino que ambos se encontrassem. Clara, separada do homem que havia amado e que subitamente adoecera e morrera. De AIDS. A dor havia sido quase insuportável, mais que perde-lo ela descobrira que ele tinha transmitido à ela aquele maldito vírus. Foi como uma bomba que explodiu dentro de si abalando todas as suas estruturas. Espanto, medo, angústia, tristeza e uma raiva imensa... dele, de Deus, de si mesma. Por que ela? O que tinha feito de tão errado pra merecer esse castigo?

Clara passou por todas as fases que antecedem a aceitação. Suportou o insuportável. Lentamente foi juntando os pedacinhos, tentando em toda a sua fragilidade descobrir alguma força que a fizesse seguirem frente. O pior de tudo era calar a sua dor. Não queria que ninguém soubesse, principalmente sua mãe. Era doloroso demais imaginar o seu sofrimento. Quanto aos outros, pra que contar? Para ser julgada e condenada? Para ter sua vida exposta, sujeita ao preconceito e ignorância dos vizinhos? Justo naquela cidade tão pequena...

Encontrou acolhida junto às pessoas que se dedicavam a cuidar dela e de tantos outros. Foi com enorme resistência e cheia de dúvidas que aceitou participar de um grupo terapêutico. Tinha medo da exposição. Mas afinal aquelas pessoas estavam passando pelo mesmo que ela e já se encontravam para passar pelas consultas. Enfim aceitou o convite. Foi desse modo que conheceu Marcos. Começaram com olhares de tímido interesse e atração. Passaram a caminhar lado a lado até a casa da Clara, após as reuniões. E foram compartilhando suas histórias. Encontrando acolhida e escuta para as suas dores, apaixonaram-se. Mas tinham medo. Medo de amar, medo de perder. Como se não acreditassem merecer da vida essa chance, esse encontro.

Mas como o amor grita mais alto e invade todos os espaços, ele venceu. Namoraram. Casaram.

Tempos depois, apesar de todas as inúmeras orientações para que se prevenissem, Clara engravidou. O desejo foi muito poderoso, foi capaz de sabotar toda razão. Foi uma mistura intensa e delicada de sentimentos. Alegria, medo, culpa, ansiedade...esperança. Fez tudo o que foi necessário para que seu filho não recebesse aquela herança.

Nasceu Pedro, forte e perfeito. Clara viveu a emoção da maternidade, entristecida por não poder amamentar seu bebe, mas renovada pela vinda daquela criança tão amada. Pedro foi cuidado, tomou todas as medicações necessárias, e finalmente após 18 meses teve confirmado seu resultado de exame. Negativo. Foi uma festa, cada um daqueles profissionais que acompanharam todo o processo, não pode conter a emoção. Clara e Marcos renasceram em Pedro.

Essa é uma história verídica; os nomes, é claro, são fictícios.

Quis novamente o destino que eu revisse Clara e Marcos alguns anos depois. Agora não mais no ambulatório, mas no hospital onde eu trabalhava. Acompanhei a internação de Clara e pude estar ao seu lado até o fim. Serena, paradoxalmente, apesar da dor e do medo, estava agradecida pela vida que havia construído para si. Todos aqueles cacos deram origem a um lindo mosaico, que finalmente ela pudera admirar.

Um comentário:

Solange Maia disse...

de alguma forma já passei por isso... já fiz meu mosaico... e acho que ainda o faço...

que lindo saber das conquistas deles, como é bom podermos compartilhar dessa história...

beijo grande